Quanto um tema que serve de enredo para a história de uma aristocrata austríaca nos primórdios do século XX pode ser relevante para o pobre consumidor emergente do século XXI? E qual é a relação possível de um velho preceptor de uma donzela na Estíria e as lágrimas de um jovem niilista que não teme descrever o que pensa?
A história se passa próximo de Salzburgo na Áustria, numa região conhecida pelos belos campos e bosques intermináveis. Nesse cenário que mais parece as ricas paisagens impressionistas de Claude Monet, Marcel Proust ( 1871-1922) descreve um de seus primeiros contos, intitulado Violante ou a Mundanidade¹.
Violante é herdeira de uma rica e extensa propriedade. Seus pais morrem quando ainda é apenas uma adolescente. Na verdade seu pai havia morrido há mais tempo, durante um acidente de caça. Acidente igualmente parecido que acabará por levar sua mãe também, anos mais tarde. Quase todo tempo a menina fica na presença de seu preceptor, Augustin, um amável senhor que detinha um conhecimento de vida muito acima dos que o julgavam pelos seus trajes de criado. Ela fora criada distante da civilização e assim pode aprender a ouvir e tocar coisas visíveis e às vezes invisíveis aos olhos mundanos. Isso mesmo, Violante era um menina pura.
Tal pureza foi-lhe cortante quando ao conhecer um jovem da cidade, e ouvir ousadas investidas deste rapaz, recusou-se a beijá-lo e prosseguiu sua vida campina. Mas este fato mudaria a vida da garota para sempre. Com o passar dos anos começou a acreditar que não se casaria, caso não tomasse uma atitude drástica: a de se mudar para a Cidade.
Augustin até que tentou persuadi-la para que não fosse com argumentos mais que nobres. Afirmava que depois do contato com as “misérias” humanas que habitavam o coração dos cosmopolitas ela jamais conseguiria ter a pureza que lhe era tão peculiar por ser, desde a infância, parte da natureza e toda sua simplicidade terrena. Mas, Violante estava decidida e se mudou. Casou-se com um homem muito rico, alinhou sua beleza natural e jovial com belas roupas e jóias. Tudo impressionava muito em Violante e assim, era muito admirada no meio em que vivia. A camponesa, apesar de jamais ter sido plebéia, tornara-se uma importante mulher a qual todos convidavam para festas, encontros, chás e outras puerilidades.
O velho Augustín, que por muitas vezes tentou convencer sua senhora voltar para a Estíria, acreditava que um dia, quando ela se cansasse de tudo, ela voltaria.
“não vos apoieis no junco que o vento agita e não depositeis nele vossa confiança pois toda carne é como a relva , e sua glória passa como a flor do campo”
Bem, resumindo o conto, após tantas festas, compras e noites mal-dormidas, o tempo passou; e agora, as festas já não eram mais constantes, os convites já eram mais raros e a beleza da pele fina saia de cena para dar espaço às marcas da vida. Violante, que tinha em seu sangue a vivência jamais corrompida de uma “raiz do campo”, vivia hoje apenas no estado de flor, que a cada inverno se torna ectoplasmas. Como era de se esperar ela cansou, e pedia com frequência ao marido que ambos fossem embora para Estíria. O bom marido sempre concordara com a escolha de sua esposa, mas era ela quem sempre adiava a viagem, com diversas desculpas.
Violante nunca voltou ao campo, morreu velha e muito infeliz. A moribunda figura que atendia por Violante nos seus últimos dias de vida, em nada lembrava a doce e alegre menina que corria nos campos, tocava piano e cantava sozinha nos jardins de seu paraíso na infância.
O Conto termina com uma observação do autor, sobre as expectativas de Augustin, que nos faz refletir acerca dos valores que consideramos verdadeiramente “valorosos” em nossa vida e , o grande Proust, na minha opinião, mata a grande charada de nossa incapacidade de mudança que nos concerne , a cada dia, a um calabouço mais fundo em nossa triste existência consumista.
(...) Augustin contara com o fastio. Mas não contara com uma força que, se alimenta de inicio pela vaidade, vence o fastio, o desprezo, o próprio tédio: O hábito.
Esse é o gatilho que corrompe a todos os cidadãos no mundo onde somos imagens. Não a imagem natural, que alguns atribuem sua autoria divina, mas sim a imagem hipotética daquilo que somos através do que mostramos ter. O hábito nos tornou comuns. O hábito nos tornou semelhantes. Somos todos semelhantes perante nossos desejos de consumo. O problema é que não somos nada semelhantes perante nosso poder de consumo. E é nesse momento, que o pobre consumidor do século XXI, se vê numa pequena ilha habitada por milhões de pessoas enquanto poucos desfrutam do espaço e dos prazeres de um imenso continente.
Talvez a saída esteja no desejo de retornar ao campo. No campo que existe dentro de nós.
A pureza de quando não sabíamos comprar, nem vender. Muito menos exibir, ostentar, cobiçar bens que não existem. Os bens que Violante conquistou nenhum valor tinham, pois toda a riqueza fora desprezada em nome de um hábito que alimentava uma necessidade parva e medíocre.
Sinto-me como Augustin, que esperava uma mudança por conta das percepções dos erros, mas que não contava que o enraizamento de atos sem nenhum sentido presente, fosse capaz de emergir um ser humano numa sórdida lama de incapacidade e covardia.
Os ricos morrem de tédio por consumismo irracional, os pobres morrem de tédio por desejarem um consumismo irracional. E qual é a razão de ser um balaustre do consumo numa promoção, explicitamente, reveladora? Nenhuma. Apenas a certeza de que “morreremos cheios de uma vida tão vazia”².
Só nos damos conta de que foi um erro tanto exibicionismo de “imagem” quando ela nos deixa e é subitamente, ou lentamente, substituída por nossa verdadeira face, nossos verdadeiros medos e , assim, afasta aqueles que nunca estiveram ao nosso lado, abrindo as portas para uma ruidosa solidão que grita em nossa alma a amargura de termos desperdiçado tanto tempo com nada. Esse grito se torna ainda mais retumbante quando notamos que tal destino nem fora nossa escolha na juventude, mas sim, uma insistente promoção de vulgaridades e imediatismos que nos encantara e mais tarde nos condenaria a morte com um pequeno coração ainda pulsante.
Salt Lake City – Utah 07 de janeiro de 2010
JD
¹ VIOLANTE ou a MUNDANIDADE – Marcel Proust –tradução de Dorotheé de Bruchard.
² trecho da canção Muros e Grades – Humberto Gessinger.
A história se passa próximo de Salzburgo na Áustria, numa região conhecida pelos belos campos e bosques intermináveis. Nesse cenário que mais parece as ricas paisagens impressionistas de Claude Monet, Marcel Proust ( 1871-1922) descreve um de seus primeiros contos, intitulado Violante ou a Mundanidade¹.
Violante é herdeira de uma rica e extensa propriedade. Seus pais morrem quando ainda é apenas uma adolescente. Na verdade seu pai havia morrido há mais tempo, durante um acidente de caça. Acidente igualmente parecido que acabará por levar sua mãe também, anos mais tarde. Quase todo tempo a menina fica na presença de seu preceptor, Augustin, um amável senhor que detinha um conhecimento de vida muito acima dos que o julgavam pelos seus trajes de criado. Ela fora criada distante da civilização e assim pode aprender a ouvir e tocar coisas visíveis e às vezes invisíveis aos olhos mundanos. Isso mesmo, Violante era um menina pura.
Tal pureza foi-lhe cortante quando ao conhecer um jovem da cidade, e ouvir ousadas investidas deste rapaz, recusou-se a beijá-lo e prosseguiu sua vida campina. Mas este fato mudaria a vida da garota para sempre. Com o passar dos anos começou a acreditar que não se casaria, caso não tomasse uma atitude drástica: a de se mudar para a Cidade.
Augustin até que tentou persuadi-la para que não fosse com argumentos mais que nobres. Afirmava que depois do contato com as “misérias” humanas que habitavam o coração dos cosmopolitas ela jamais conseguiria ter a pureza que lhe era tão peculiar por ser, desde a infância, parte da natureza e toda sua simplicidade terrena. Mas, Violante estava decidida e se mudou. Casou-se com um homem muito rico, alinhou sua beleza natural e jovial com belas roupas e jóias. Tudo impressionava muito em Violante e assim, era muito admirada no meio em que vivia. A camponesa, apesar de jamais ter sido plebéia, tornara-se uma importante mulher a qual todos convidavam para festas, encontros, chás e outras puerilidades.
O velho Augustín, que por muitas vezes tentou convencer sua senhora voltar para a Estíria, acreditava que um dia, quando ela se cansasse de tudo, ela voltaria.
“não vos apoieis no junco que o vento agita e não depositeis nele vossa confiança pois toda carne é como a relva , e sua glória passa como a flor do campo”
Bem, resumindo o conto, após tantas festas, compras e noites mal-dormidas, o tempo passou; e agora, as festas já não eram mais constantes, os convites já eram mais raros e a beleza da pele fina saia de cena para dar espaço às marcas da vida. Violante, que tinha em seu sangue a vivência jamais corrompida de uma “raiz do campo”, vivia hoje apenas no estado de flor, que a cada inverno se torna ectoplasmas. Como era de se esperar ela cansou, e pedia com frequência ao marido que ambos fossem embora para Estíria. O bom marido sempre concordara com a escolha de sua esposa, mas era ela quem sempre adiava a viagem, com diversas desculpas.
Violante nunca voltou ao campo, morreu velha e muito infeliz. A moribunda figura que atendia por Violante nos seus últimos dias de vida, em nada lembrava a doce e alegre menina que corria nos campos, tocava piano e cantava sozinha nos jardins de seu paraíso na infância.
O Conto termina com uma observação do autor, sobre as expectativas de Augustin, que nos faz refletir acerca dos valores que consideramos verdadeiramente “valorosos” em nossa vida e , o grande Proust, na minha opinião, mata a grande charada de nossa incapacidade de mudança que nos concerne , a cada dia, a um calabouço mais fundo em nossa triste existência consumista.
(...) Augustin contara com o fastio. Mas não contara com uma força que, se alimenta de inicio pela vaidade, vence o fastio, o desprezo, o próprio tédio: O hábito.
Esse é o gatilho que corrompe a todos os cidadãos no mundo onde somos imagens. Não a imagem natural, que alguns atribuem sua autoria divina, mas sim a imagem hipotética daquilo que somos através do que mostramos ter. O hábito nos tornou comuns. O hábito nos tornou semelhantes. Somos todos semelhantes perante nossos desejos de consumo. O problema é que não somos nada semelhantes perante nosso poder de consumo. E é nesse momento, que o pobre consumidor do século XXI, se vê numa pequena ilha habitada por milhões de pessoas enquanto poucos desfrutam do espaço e dos prazeres de um imenso continente.
Talvez a saída esteja no desejo de retornar ao campo. No campo que existe dentro de nós.
A pureza de quando não sabíamos comprar, nem vender. Muito menos exibir, ostentar, cobiçar bens que não existem. Os bens que Violante conquistou nenhum valor tinham, pois toda a riqueza fora desprezada em nome de um hábito que alimentava uma necessidade parva e medíocre.
Sinto-me como Augustin, que esperava uma mudança por conta das percepções dos erros, mas que não contava que o enraizamento de atos sem nenhum sentido presente, fosse capaz de emergir um ser humano numa sórdida lama de incapacidade e covardia.
Os ricos morrem de tédio por consumismo irracional, os pobres morrem de tédio por desejarem um consumismo irracional. E qual é a razão de ser um balaustre do consumo numa promoção, explicitamente, reveladora? Nenhuma. Apenas a certeza de que “morreremos cheios de uma vida tão vazia”².
Só nos damos conta de que foi um erro tanto exibicionismo de “imagem” quando ela nos deixa e é subitamente, ou lentamente, substituída por nossa verdadeira face, nossos verdadeiros medos e , assim, afasta aqueles que nunca estiveram ao nosso lado, abrindo as portas para uma ruidosa solidão que grita em nossa alma a amargura de termos desperdiçado tanto tempo com nada. Esse grito se torna ainda mais retumbante quando notamos que tal destino nem fora nossa escolha na juventude, mas sim, uma insistente promoção de vulgaridades e imediatismos que nos encantara e mais tarde nos condenaria a morte com um pequeno coração ainda pulsante.
Salt Lake City – Utah 07 de janeiro de 2010
JD
¹ VIOLANTE ou a MUNDANIDADE – Marcel Proust –tradução de Dorotheé de Bruchard.
² trecho da canção Muros e Grades – Humberto Gessinger.
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